Avanços neoliberais sobre a saúde mental

Por Denise Maurano, Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas do Brasil. 

 

 -I- 

Eis que na calada da noite, ou mesmo no descaramento do dia, já que a vergonha pelos absurdos comparece cada vez menos, nós, psicanalistas, fomos surpreendidos com a invencionice de uma Faculdade de Psicanálise que promete, ao final de quatro anos, dar diploma de psicanalista, com autorização para clinicar. Como se não bastasse, a proposta é de um curso à distância, podendo ser feito de onde você estiver e podendo, portanto, ser acessável aonde for, a partir de critérios nada analíticos, a título de democratizar o acesso à psicanálise.

Mais, ainda: com um discurso oportunista que, por vezes, mistura premissas corretas com metodologias de transmissão e contextos completamente distorcidos, maquia, com ares de seriedade, os objetivos que aparentam ser apenas de ganhar dinheiro, massificando o que pensam ser a educação e fomentando a dominação de uma política neoliberal predatória que avança sobre o mundo.

No caso da psicanálise, temos o risco de um projeto desses, levado a cabo, pôr em risco a saúde mental da população, já que em breve teremos milhares de pseudo-analistas diplomados, mexendo com a cabeça das pessoas, sem nenhuma estrutura para tal. Uma palavra ou um gesto mal colocado pode ter consequências atrozes, pode levar, até mesmo, ao suicídio. Ouvi dizer que já contam com 2.000 inscritos para ingressarem esse ano. Como publicado em um jornal de grande circulação, formar psicanalistas nesses padrões é como “graduar um piloto de avião por WhatsApp”. Eu pergunto: Você voaria com um piloto desses? Enviaria seu filho? Ou, ainda: Você quer ser esse piloto?

Ao fazer alusão ao tripé que sustenta a formação do psicanalista desde a proposta inédita de Freud, é recomendado: estudo teórico crítico, supervisão do trabalho e processo pessoal de análise. A tal faculdade não se furta em “implementá-lo”. Porém, o enquadra no cumprimento protocolar de um certo número de disciplinas cursadas online, mencionando oferecer, no último ano do curso, supervisão e experiência com processo de análise, ou análise didática que, segundo eles, é psicoterapia psicanalítica de grupo, tentando, com isso, se vestir de uma credibilidade que só engana os desavisados, além de invadirem o campo psicoterápico que é atividade reconhecida da Psicologia e da Psiquiatria.

 

-II-

Mas vocês poderiam perguntar: por que não? Eles não estarão cumprindo a proposição do tripé freudiano? Ainda que tais cursos online fossem eficientíssimos e ainda que fosse possível a sustentação do trabalho supervisionado formatado em grupo, o tratamento pessoal, que é a condição princeps para a possibilidade do surgimento de alguém que esteja em condições de conduzir um trabalho psicanalítico, extrapola as regras temporais e vai bem além do que pode a academia, por mais competente que ela seja. Aliás, tratamento pessoal para funcionar não pode ser demanda da academia e, sim, desejo do sujeito. A academia pode funcionar muito bem para formar mestres, especialistas e doutores, mas não psicanalistas. É por isso que até hoje a psicanálise não é profissão regulamentada. Sua regulamentação é impossível e, caso fosse forçada, comprometeria a própria sobrevivência do rigor analítico que não é afeito à camisa de força de regras gerais. Funcionamos no um a um. Por mais que isso dê um trabalho imenso, e fiquemos expostos a uma enxurrada de oportunistas que se autonomeiam psicanalistas ao léu, é só assim que a psicanálise pode sobreviver. Instituir um diploma e uma regulamentação é legalizar um engodo.

O Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas do Brasil, constituído há mais de 20 anos, com representantes de 48 escolas de todo o país, vem defendendo a psicanálise das tentativas de regulamentação, ou de submissão a outros campos como a religião, ou mesmo a Medicina. Temos tentado instruir a sociedade e a classe política, para que respeitem a especificidade de nosso ofício e nos deixem trabalhar em paz. Diante dessa nova ameaça, redigimos um Manifesto subscrito pelas escolas que compõem o Movimento Articulação e por outras 101 do Brasil e do mundo e que está circulando nas redes sociais. Certamente, esse apoio expressivo não se dá à toa.

 

-III-

Lidamos com o inconsciente, com o indomesticável em nós e nos outros. Não tem como o inconsciente ser formatado pret-à-porter, segundo a grade disciplinar de um curso, ou o interesse carreirista de olho nas tendências do mercado.

Cuidado! Essa proposta ignora toda a tradição de mais de cem anos que evidencia que a formação de um psicanalista só pode se dar no rigor de um processo que é absolutamente singular, artesanal, no qual diversas escolas já se encontram seriamente reconhecidas, acompanhando o trajeto de cada um. Se abster enquanto sujeito para se emprestar como suporte dos investimentos inconscientes do seu paciente exige um atravessamento de suas próprias questões.

Eles vendem a ilusão de uma finalização de formação com a entrega de um diploma ao fim de quatro anos de curso. Algo que nem terá a legitimidade da Psicologia com suas técnicas psicoterápicas e propostas, por exemplo, de conscientização, condicionamento e sugestão, nem se aproximará da Psiquiatria com seus métodos interventivos e medicamentosos e, estará, mais ainda, a léguas de distância da psicanálise, ou seja, da investigação do inconsciente relativa ao trabalho analítico. Agora, certamente, você estará na moda. Já que a moda, em tempos como o nosso, sobretudo em nosso país, é a falácia, o fake, o simulacro mal-acabado. É isso que você quer?

A relação que um analista tem com o saber, inclusive, acerca de seu próprio inconsciente, não permite abreviações e é mesmo inesgotável. Todo encurtamento tecnicista, precipitado, só serve a interesses escusos bem ao gosto do neoliberalismo dominante. Aliás, certamente não é à toa que quem responde pelo Centro Universitário que está propondo esse curso é nada mais, nada menos, que o maior doador da campanha do atual governo. Sua empresa cresce vertiginosamente no Brasil e no exterior. Certamente, conseguir – desse MEC esdrúxulo – autorização para fazer funcionar essa anomalia, que vai na contramão de toda a história da psicanálise, é bem ao gosto do que estamos vivendo em tempos tão sombrios. O pior é que é tudo absolutamente legal, dado que a lei é manipulada para atender ao gosto do freguês mais abastado. Mas saibam, isso não é legítimo e, sobretudo, não é ético.

Essa dita inovação já nasceu velha. Explorar a educação para fins antiéticos e inescrupulosos não é nenhuma novidade. Como vocês podem verificar, o curso não surge de um movimento de dentro do campo analítico reconhecido e respeitado desde Freud, mas sim, se impõe de fora. Nem mesmo explicita o quadro de professores e sua proposta confusa. Invade até mesmo o campo da Psicologia. Certamente, vão tentar caçar analistas que topem participar dessa farsa. E o pior é que até podem vir a conseguir, via atrativos financeiros e mercadológicos, o que será extremamente lamentável!

Mas se você se interessa verdadeiramente pela psicanálise, se coloque a altura dessa opção. Siga o trajeto que é preciso ser seguido, porque o inconsciente até pode fazer atalhos que nos surpreendem no nosso dia a dia, mas a formação de um analista, não. Existem diversas escolas de psicanálise que te acompanharão na sua formação. Agora, se você tiver pressa de ganhar dinheiro, e for esse seu foco, é melhor escolher outra atividade. Tudo tem seu tempo. Não se deixe enganar! Fique de olho vivo!

 

Denise Maurano

Psicanalista, membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise, RJ.
Profa. Titular da Universidade Federal do Estado do RJ (2019).
Doutora em Filosofia PUC/RJ e na Universidade de Paris XII/FR,
Pós-doutora em Letras pela PUC/RJ e em Psicanálise pela Universidade de Nice/FR.
Editora de Psicanálise e Barroco em Revista.

 

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