Reconhecimento do luto: por uma sociedade não melancolizada

O trabalho do luto é necessário e esperado para se desprender do objeto amado morto, trazer de volta para o enlutado a “parte sua” que foi junto com o objeto perdido.  Recompor-se psiquicamente que requer tempo e trabalho. Por isso a dor psíquica é o trabalho de superinvestir e desinvestir o objeto perdido deixando em quem vive as marcas do objeto perdido – morto.

Já na melancolia, “as auto-recriminações são recriminações contra um objeto de amor, a partir do qual se voltaram sobre o próprio ego”[1]. O ego se parte em duas partes que é a crítica do ego ao objeto e contra si mesmo em função da identificação com parte do objeto no próprio eu. Assim, diferente do luto, as recriminações e a identificação estão no eu. Nas auto recriminações o sujeito acusa a si mesmo e faz uma acusação pública quanto ao objeto perdido.

Neste sentido, o processo do luto se apresenta nesta dupla direção: a queixa da dor da perda do objeto amado e uma queixa pública. Podemos localizar, assim, um outro sentido da condição do critério de realidade, ou seja, o reconhecimento da morte no sentido privado e no sentido do público. Ocorrem processos de luto impossíveis de se concluírem, uma vez que o critério de realidade esta desmentido. O não saber da morte, mantém o morto vivo. Como haver um trabalho de luto, com substituição do objeto, sem prova da realidade pública? Há algo da realidade desmentido, quando os rituais frente à perda não se efetivam, quando ao trauma da perda se contrapõe negligência, irresponsabilidade pública, violência de Estado, políticas de morte. Falamos, então, de melancolização. Situações que vivemos em vários tempos de nossa história, desde a colonização ao contexto da pandemia atual quanto ao desrespeito e desvalor da vida, na omissão da verdade, na mentira, no descaso pela vida: todas formas de violência de Estado.

Antígona lutou para enterrar seu irmão, que não era o único irmão, mas enterrá-lo foi esse gesto único. Sabia que morreria por isso, mas percorreu o processo de luto como condição de uma ética. Como psicanalistas buscamos também recuperar a função pública, política e coletiva do luto. Pensar o luto como um processo intrapsíquico, requer incluir o traumático de situações em que a violência de Estado produz efeitos no sujeito psíquico e social, na lógica de “queixar-se é dar queixa”, ou seja, onde o Estado falta, se omite.

Assim, apresentamos duas situações da importância do critério de realidade: quando a existência do morto é desmentida, ocultada, ou desrespeitada, o luto não se processa. Quando o sujeito reconhece a inexistência do morto para si, há o desfecho do luto e o desprendimento cria a condição de nova escolha de objeto de amor. Estas reflexões são importantes frente as situações de nosso tempo – pandêmico, traumático e violento.

Como fazer trabalhar os efeitos de processos de melancolização senão como ritos coletivos, cumprindo o ritual a função de um critério de realidade. No período da ditadura civil-militar brasileira diante da prática do desaparecimento forçado, o sujeito era morto por tortura e dado como desaparecido para os familiares e para a sociedade. Prática também utilizada no regime nazifascista, onde a máxima “fazer desaparecer a morte pelo silêncio” foi amplamente utilizada, por ocasião dos campos de extermínios.

O movimento das Mães e Avós da Praça de Maio na Argentina foi o coletivo que iniciou publicamente a exigir resposta ao governo militar pelo paradeiro de seus filhos e netos dando voltas na frente da Casa Rosada, sede do governo. Caminhavam por que uma ordem pública impedia de ficarem ali paradas por horas. Então caminhavam, como ato de resistência. Durante 44 anos “deram queixa” de seus lutos.  Hoje são 130 netos recuperados. Lutos melancólicos que buscaram um trâmite psíquico, no espaço público, recuperando a morte como fato social. A cada neto encontrado, todas estas mulheres abriam uma via simbólica de processar suas próprias perdas, através da identificação coletiva. Depois de 44 anos pela primeira vez deixaram de caminhar por causa da pandemia, mas trouxeram ao mundo suas histórias, garantiram a memória, a verdade e a justiça, como condições de elaboração simbólica. Obtiveram respostas a suas queixas uma vez que comprometeram o Estado enquanto responsável pelo “desaparecimento” de seus filhos e netos e romperam um caminho de melancolização através de um trabalho coletivo.  E foram consideradas las loucas!

O excesso do vírus e o desmentido por parte do Estado – representante da cultura – têm efeitos que perpassam o laço social e, consequentemente, o trabalho de luto deixa de ser uma tarefa somente individual, como também coletiva. Juntos podemos abrir espaço para novas vias, e nesse sentido o SIG Intervenções Psicanalíticas convida àqueles que perderam pessoas nesse momento pandêmico a participarem da Conversa Pública O que ficou de quem foi? como abertura para que a palavra possa circular, os testemunhos possam advir, possibilitando o reconhecimento das perdas, o trabalho do luto e a construção de memórias.

 

Bárbara de Souza Conte

Psicanalista, membro da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, coordenadora do projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas e Coletivo Testemunho e Ação, juntamente com Eurema Gallo de Moraes e Marilena Deschamps da Silveira.

 

 

[1] Freud em Luto e Melancolia, p.59 (1915).

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